Breves considerações sobre o sistema integral de justiça transicional colombiano

Autor
Diego Fernando Tarapués Sandino

Tradução
Raquel Lima Scalcon e Estéfano Risso

O direito internacional não proíbe a flexibilização do tratamento judicial penal nacional em cenários de transição, mas pede que ela seja feita (se feita) de maneira responsável, limitando possíveis graves violações aos Direitos Humanos (DDHH) e fomentando estratégias que permitam esclarecer efetivamente os fatos ocorridos e responsabilizar os reais responsáveis. (1) A implementação de mecanismos extrajudiciais para garantir o direito à justiça, se em harmonia com outros mecanismos que garantam complementarmente a verdade e o direito à reparação, não gera responsabilidade internacional pelo descumprimento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), mais ainda quando o Estado promove a implementação de um sistema normativo integral que faça a ponderação entre os direitos das vítimas e as obrigações emanadas do sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Tal é o caso da Colômbia, um Estado parte do sistema interamericano que vem implementando normativamente um modelo que busca enfrentar, de maneira integral e holística, através de mecanismos judiciais ou extrajudiciais, as inúmeras (graves) violações aos direitos humanos que se deram ao longo de mais de meio século de conflito armado em suas fronteiras. As bases para um sistema integral de justiça transicional na Colômbia foram forjadas especialmente nos últimos cinco anos, a partir de significativas reformas constitucionais. (2)
A primeira delas deu-se paralelamente às conversas previas à instauração da mesa de negociações de Havana. Trata-se do Ato Legislativo n. 1 de 2012, que incorporou os artigos transitórios 66 e 67 à Constituição colombiana. Suas principais contribuições para a implementação de uma estratégia integral e holística de justiça transicional foram: (i) a constitucionalização da justiça transicional para alcançar-se a paz; (ii) a constitucionalização dos direitos das vítimas à verdade, à justiça, à reparação e a não repetição; (iii) a desjudicialização das tentativas de se auferir a verdade, a justiça e a reparação, permitindo-se criar mecanismos de caráter extrajudicial não somente para fins investigativos, mas também para o esclarecimento da verdade e para a reparação das vítimas; (iv) a obrigação de se criar uma Comissão da Verdade; e (v) a criação de critérios de priorização e seleção, como mecanismos judiciais para se concentrar os recursos e a capacidade estatal de persecução penal do Estado sobre os reais responsáveis pelos crimes internacionais. (3)

Da análise dessas cinco grandes contribuições do Marco Jurídico para a Paz (MJP), da formulação de uma estratégia integral e holística de justiça transicional depreendem-se vários elementos que permitem evidenciar a sujeição do Estado colombiano a alguns “standards” internacionais. Isso se percebe não somente quanto ao reconhecimento dos direitos das vítimas e quanto à centralização do modelo de justiça na restauração (dentro do possível) dos direitos delas (acima de qualquer finalidade retribucionista, normalmente preocupada mais com os responsáveis pelo fato do que com as suas vítimas), mas também no próprio desenho institucional de mecanismos extrajudiciais que auxiliem e complementem o trabalho da justiça, tais como a Junta de Reparação e a Comissão da Verdade, que mostram o compromisso e a reorientação do Estado colombiano no enfrentamento das graves violações ocorridas durante o conflito armado interno. Ademais, a implementação de mecanismos judiciais alternativos minimalistas, que estejam de acordo com a necessidade e a capacidade institucional, vai ao encontro da postura pragmática e eficiente que se procura enfocar no trabalho de esclarecimento de crimes mais graves e na busca por seus reais responsáveis. Para a promoção de tal fim, estão orientados os mecanismos como a fixação de penas alternativas, o uso de modalidades especiais de execução de pena, a renúncia condicionada

da persecução penal e o estabelecimento de critérios de seleção e priorização, os quais, junto a métodos novos de investigação e de julgamento baseados na elaboração de contextos e na reconstrução de padrões, colocam em andamento uma nova estratégia de persecução penal, a qual visa a esclarecer e a indicar os responsáveis pelas mais graves violações aos DDHH. (4)

Por outro lado, a segunda reforma constitucional foi consequência da implementação normativa do que foi acordado sobre as Vítimas do Acordo de Paz nas negociações de Havana. O Congresso aprovou, em abril de 2017, o Ato Legislativo n. 1 de 2017, que criou um título inteiro de disposições transitórias visando ao fim do conflito armado e à construção de uma paz estável e duradoura. Nesse sentido, por meio dessa reforma constitucional, deu-se vida ao Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e não Repetição, composta por quatro componentes: (i) La Comisión para el Esclarecimiento de la Verdad, la Convivencia y la No Repetición; (5) (ii) La Unidad de Búsqueda de Personas dadas por Desaparecidas en el contexto y en razón del conflicto armado; (6) (iii) La Jurisdicción Especial para la Paz; (7) (iv) Medidas de Reparación Integral. (8)

Essa nova reforma constitucional termina a tarefa que iniciou o MJP, ao regulamentar constitucionalmente os diversos elementos que, desde 2012, já fundamentavam a criação do Sistema Integral de Justiça Transicional, só que de maneira mais detalhada, partindo do consenso político ao qual se chegou durante as negociações do Acordo de Paz. Deve-se esclarecer que, além da previsão da possibilidade de se recorrer a sanções extrajudiciais, (9) judicialmente criaram-se diversos modos de se resolver a situação jurídico-penal daqueles que cometeram delitos relacionados (de maneira direta ou indireta) com o conflito armado, através da concessão de anistias, indultos, da imposição de penas alternativas, dentre outros.

O Ato Legislativo n. 1 de 2017 criou a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), que conta com uma competência prevalecente, (10) de forma a garantir a persecução judicial-penal das mais graves violações aos direitos humanos, com foco nos reais responsáveis pelos crimes internacionais cometidos na Colômbia. Dentro dessa estrutura, a Sala de Reconhecimento de Verdade, de Responsabilidade e de Determinação dos Fatos e das Condutas e a Secretaria Executiva da JEP serão essenciais para se alcançar esse objetivo, já que passarão a ser a “porta de entrada” da justiça especial. Para assegurar o éxito do sistema, a JEP pretende desprender-se de uma série de fatos puníveis que, por razões materiais, não representam graves violações aos DDHH. Nesta ordem de ideias, o sistema parte da concessão de anistias e indultos aos presos políticos (Sala de Anistia ou Indulto); da renúncia à persecução penal como forma de tratamento simétrico ou diferenciado, equilibrado e simultâneo daqueles indivíduos sujeitos à JEP que, constitucionalmente, não podem ser anistiados nem podem receber indulto, uma vez que não seriam presos políticos (Sala de Definição das Situações Jurídicas), tal como é o caso dos membros da força pública. (11) As condutas mais graves e representativas serão conhecidas dentro da JEP, especialmente pelo Tribunal Especial para a Paz, com base em um modelo de três níveis de determinação da pena, à luz do nível de colaboração ou não do processado com o sistema. (12)

Espera-se, ansiosamente, que tanto a JEP quanto os demais componentes que formam o Sistema Integral de Justiça Transicional possam satisfazer a totalidade dos direitos das vítimas e esclarecer os diversos níveis das graves violações aos DDHH, assim como as infrações ao Direito Internacional Humanitário que a Colômbia experimentou em mais de seis décadas de conflito armado interno.

Notas

(1) Acosta, Juana Inés; Álvarez, Lina. Las líneas lógicas de investigación: una contribución del Sistema Interamericano de Derechos Humanos al juzgamiento de los crímenes de sistema en marcos de justicia transicional. Revista Colombiana de Derecho Internacional, 2011, 57-87.

(2) Pode-se encontrar um estudo detalhado sobre a contribuição dessas reformas constitucionais para a implementação de um sistema integral de justiça transicional em: Tarapués, Diego (Coord.). Justicia transicional, reforma constitucional y paz: reflexiones sobre la estrategia integral de justicia transicional en Colombia. Editorial Biblioteca Jurídica Diké/Editorial USC, 2017.

(3) Sobre isso, veja-se: Ambos, Kai (Coord.). Justicia de transición y constitución I. Bogotá: CEDPAL, TEMIS, 2014. Ambos, Kai; Steiner, C. (Coords.). Justicia de transición y constitución II. Bogotá: CEDPAL, TEMIS, 2015.

(4) Uprimny, Rodrigo; Sánchez, Luz María; Sánchez, Nelson Camilo. Justicia para la paz. Crímenes atroces, derecho a la justicia y paz negociada. Bogotá: Dejusticia, 2014, pp. 21 e ss.

(5) Ato Legislativo 01 de 2017, Art. transitório 2.

(6) Ibid. Art. transitório 3.

(7) Ibid. Arts. Transitórios, do 5 ao 17 e do 23 ao 26.

(8) Ibid Art. transitório 18.

(9) Apesar de que, desde 2012, se tivesse clareza quanto à possibilidade de implementação de mecanismos extrajudiciais para garantir o dever de investigar e buscar a culpa, não havia ainda nenhuma regulamentação clara que contemplasse explicitamente esses tipos de medidas. Do negociado em Havana, é possível visualizar, ao menos, duas alternativas de sanção extrajudiciais: a prestação de serviço comunitário por parte das pessoas dadas como culpadas, no contexto e em razão do conflito armado, pela “Unidad de Búsqueda de Personas dadas por Desaparecidas”, assim como a participação ativa no processo de limpeza e descontaminação dos territórios repletos de minas, artefatos explosivos improvisados, munições abandonadas e outros restos da guerra.

(10) Ibid. Art. transitório 6.

(11) Ibid. Art. transitório 21.

(12) Aqueles que reconhecerem, de maneira inicial e oportuna, a verdade dos fatos e sua responsabilidade, receberão de 2 a 5 anos de pena restritiva de liberdade; aqueles que reconhecerem até antes da sentença, receberão de 5 a 8 anos de pena privativa de liberdade; aquele que não reconhecer a verdade ou a sua responsabilidade, sendo condenado em um processo dispositivo (com respeito aos direitos das partes), receberá de 15 a 20 anos de pena restritiva de liberdade. Veja-se o Acuerdo final para la terminación del conflicto y la construcción de una paz estable y duradera, 24 de noviembre de 2016”, pp. 164-165.